Ritual do Hain
O inverno de 1923
Ritual do Hain na Tierra del Fuego. Os dias passavam rapidamente, e a escuridão da noite invadía tudo muito cedo. Era inverno; a paisagem da Tierra del Fuego aparecia coberta de neve e gelo. Os homens se afastarão das mulheres para decidir para onde deveriam ir. A escolha não foi trivial, já que a cerimônia do Hain seria realizada ali. Sentiam que era uma das últimas celebrações de um rito moribundo, pois a chegada de doenças desconhecidas e o estabelecimento da fazenda de gado tinham dizimado seu povo e destruído um modo de vida. Separados de sua riqueza cultural, os Selk’nam ou Onas faziam um esforço para manter vivos seus costumes. Os jovens, agora transformados em peões de fazenda, mal conheciam suas tradições e os clãs não podiam mais se mover como quisessem em um território cercado pelo homem branco. Ainda assim, os anciãos lutavam para preservar “o mistério e a alegria de tudo o que estava-se escorregando por entre seus dedos. A sua nova vida não dava logar ao ritual criativo e teatral do Hain, cheio de vida e fantasia, drama e diversão”!
Os homens concordaram que o primeiro acampamento seja construído perto da margem nordeste do lago Fagnano, mas o vento forte decidiu que procurassem um local mais protegido. Com as cabanas desmontadas e a bagagem embalada em bolsas de couro, a caravana seguiu para o leste. Cobertos por grandes mantos de pele de guanaco, os homens tomaram a dianteira carregando arcos, flechas e ferramentas. As mulheres e crianças seguiam com trouxas nas costas. Após várias horas de caminhada por matas e pântanos, o grupo se instalou a poucos passos da lagoa de Peixes. Cada família construiu sua casa e acendeu a fogueira que devia queimar no centro da cabana. Em frente ao acampamento havia um amplo prado com uma pequena elevação, verdadeiro palco para a representação dos rituais.
A cerca de duzentos passos do povoado estaria a Grande Cabana, maior e mais alta que todas as outras. Como pano de fundo, a floresta coberta de neve. Tenenesk, o encarregado de preservar e transmitir a tradição dentro do clã, dirigiria sua construção e, posteriormente, a cerimônia do Hain. Terminada a refeição, ele chamou seu sobrinho Toin para acompanhá-lo até a floresta. Lá eles se reuniram com os outros homens para começar o trabalho. Seguindo o programa, eles cortaram cerca de cinquenta troncos longos e grossos. Tenenesk tomou os principais, e ordenou que fossem apoiados, um contra o outro, unidos no topo. A estrutura foi completada com varas mais finas e depois coberta com ervas coletadas no prado. Cobriram o chão com grama e desenharam uma faixa de um metro de largura que, como um anel, circundava toda a parede interna. Ali se sentariam os iniciados. A cabana do Hain estava terminada como for desde tempos imemoriais, diante do olhar expectante das mulheres que a observavam do acampamento.
Tarde a noite, Tenenesk contou aos homens do clã como essa cerimônia secreta tinha sido realizada pela primeira vez após a grande revolução original. Com uma voz lenta, ele contou como o local dos xamãs mais renomados de diferentes regiões construíram o primeiro Hain. Cada um derrubou uma árvore alta e a trouxe para o local da cabana. Tenenesk olhou para os homens e, como portador da sabedoria de seu povo, terminou dizendo: “Eram todos homens poderosos, e foram eles que fundaram esta festa secreta. Por isso estes sete pilares devem ser erguidos antes de mais nada”
Trânsito para o mundo dos iniciados
Na manhã seguinte, 22 de maio de 1923, Akukiol acordou antes do amanhecer. Ele saiu e observou cuidadosamente que as habitações do acampamento davam para a cabana cerimonial, embora não viam sua entrada. Começou a cantar. As mulheres uniram-se a ele para acompanhar o nascer do sol. Quando a estrela luminosa iluminou vagamente o amanhecer entre nuvens ameaçadoras, eles cantaram outra melodia marcando o início do dia em que a cerimônia do Hain começaria. Eram canções rituais para os meses daquele tempo sagrado.
A manhã rapidamente escureceu, deixando um frio intenso e aguado para ser sentido. Desta vez, apenas dois jovens fariam a transição solene para o mundo dos iniciados ou klóketen: Arturo, de dezesseis anos, filho de Akukiol e Halimink; e Antonio, quatorze anos, filho de Nana. Ambos aguardavam ansiosamente o momento em que seu guia viria procurá-los. Enquanto isso, as mulheres preparavam argila vermelha para as tintas que cobririam seus corpos.
Os guias reuniram os iniciados na cabana de Halimink e Akukiol. As mães enlutadas acariciavam seus filhos. Elas pareciam desfeitas. Nesse momento as outras mulheres do acampamento apareceram ao som de uma nova canção. Arturo e Antonio foram despojados de suas capas de pele e os guias amarraram seus braços a uma vara que pendia dentro da cabana. Lavarão os seus corpos e, sem esperar que a pele secasse, amassarão a terra vermelha com água e um pouco de gordura de guanaco com a qual os untarão.
Enquanto isso, as mães pintavam três listras verticais brancas em seus próprios rostos, como uma forma de explicar que ficariam separadas dos filhos por muito tempo. Apenas Akukiol também usava um cocar de pele triangular que se erguia como uma coroa. Era o símbolo da kai-klöketen, a mulher de mais alto escalão, a mãe do candidato mais velho.
Enquanto isso, os homens se mudaram discretamente para o Grande Cabana, um lugar proibido para mulheres e crianças. De repente, e para a expectativa geral, de ambos os lados da cabana cerimonial apareceram dois shoort completamente pintados de branco acinzentado, sobre os quais se destacava uma grossa linha vermelha que descia do pescoço, passando pelo centro do corpo, até os pés. Eles usavam uma máscara vermelha com pequenas aberturas para os olhos e nariz. Esses espíritos malignos começaram a se mover muito lentamente sobre o prado. Seus passos eram rígidos. De repente, eles pularam, mantendo os punhos cerrados e balançando a cabeça de um lado para o outro enquanto os homens gritavam. Era o primeiro de uma infinidade de ritos, danças e jogos que representavam os mitos da cosmogonia do mundo Selk’nam. A cerimônia tinha começado.
Os kloketen foram conduzidos para a Grande Cabana, onde os homens formaram um semicírculo ao redor deles. Arturo e Antonio foram despojados de suas capas quando Halilink ordenou que olhassem para cima. Os guias pegaram suas cabeças e as inclinaram para trás. Nesse momento, os shoort caíram em luta sobre eles ao som de gritos do resto dos homens. Os espíritos deviam amedrontar os klóketen além do tolerável, para desmoralizá-los desde o início, para que depois se submetessem às indicações e ordens dos homens presentes. Quando a luta parou, os guias forçaram os klóketen a retirar as máscaras dos shoorts. Aterrorizados com tamanha audácia, eles ergueram-se lentamente e descobriram com horror o segredo dos homens: os shoort e outros espíritos malignos dos Hain não eram seres sobrenaturais que emergiram das profundezas da Terra, como tinham sido ensinados, mas homens de seu próprio clã.
Os espíritos – sempre mascarados, sempre pintados de branco, preto e vermelho, cobrindo sua nudez com desenhos inalteráveis e simbólicos – apareciam diariamente durante os meses que durava a cerimônia. Assim vigiavam o mundo mítico que os homens Selk’nam construíram, que para as mulheres continuaria sendo um enigma
Depois da árdua luta com os shoort, Tenenesk deu a cada kloketen, como primeiro sinal de sua vida adulta, seu kochil, um cocar triangular feito de pele de guanaco. Além disso, deu-lhes uma vara para coçar a cabeça durante as longas horas em que seriam educados através da postura corporal, que consistia em sentar com o braço esquerdo apoiado na perna esquerda, olhando para a frente. Eles não tinham permissão para rir ou bocejar; eles só podiam falar para responder a certas perguntas. Pairando sobre eles, além disso, estava a implacável ameaça de não contar a ninguém, especialmente mulheres e crianças, o que acontecia dentro daquele espaço sobrenatural. Superada a impressão do primeiro e mais importante passo da iniciação, veio outra etapa fundamental: passar a noite na floresta. Eram nesses lugares ancestrais, os mesmos que seus ancestres atravessaram, onde os klóketen deviam ser educados para alcançar força, autocontrole e sobriedade. Naqueles longos dias, eles se tornariam hábeis no uso preciso do arco e flecha e aprenderiam a detectar os rastros de animais de caça.
Caçador de sombras
Quando os kloketen foram conduzidos pela primeira vez para a Grande Cabana, um terceiro homem os acompanhou. Depois da luta com os shoort, Tenenesk também lhe entregou um kochil e disse: “Já sabes destas coisas; você já era um klóketen entre os Yámana”. Assim falou Tenenesk a seu amigo Martin Gusinde, o único homem branco presente na cerimônia do Hain de 1923. Não era a primeira vez que esse estranho visitava a terra dos Selk’nam. Sacerdote da Congregação do Verbo Divino e antropólogo, chegara ao Chile em 1912, aos 26 anos, para trabalhar como professor no Liceu Alemão de Santiago e contribuir com os mais importantes centros de estudos do país. Atraído pelo desejo de conhecer os últimos indígenas do extremo sul, ele encontrou-se por ventura com Tenenesk e seu grupo enquanto acampava na cabeceira do lago Fagnano no verão de 1919. Após esta curta visita, Gusinde permaneceu na memória dos indígenas como Mank’acen ou “caçador de sombras”, o estrangeiro que insistia em fotografá-los com sua máquina fotográfica.
Esperando ser convidado para a cerimônia de iniciação, como Tenenesk tinha insinuado, no início de abril de 1923, Gusinde os visitou novamente. Quase um mês se passou entre eles e Tenenesk ainda não tinha falado nada. Por insistência de Gusinde, os homens responderam que a obrigação de buscar alimentos não lhes permitia realizar o programa Hain ininterruptamente. “Somos apenas alguns homens”, disseram. Compreendendo a magnitude do problema, Gusinde decidiu ajudá-los a reunir os alimentos necessários e deu-lhes trezentas e sessenta ovelhas provenientes de uma fazenda salesiana; além disso, prometeu entregar a cada três dias e durante toda a cerimônia, tabaco e um peso argentino para cada família.
Durante os dois meses que durou o ritual, ele anotou, gravou e fotografou tudo. Como iniciado, ele participou das conversas realizadas dentro da Grande Cabana, revelando ao mundo o segredo dos sel’knam. No calor do fogo, conheceu o mito que narrava a origem do Hain, rito que além de iniciar o klóketen, permitia preservar a sociedade patriarcal e manter as mulheres sob o domínio dos homens: Em outro tempo e antes da grande revolução, as mulheres, lideradas por Luna, governavam os homens, obrigando-os a caçar, cuidar de seus filhos e realizar tarefas domésticas. De tempos em tempos, Luna decidia celebrar um Hain para que as jovens pudessem ser iniciadas na vida adulta e também para que os homens se lembrassem de que os espíritos e divindades eram aliados indiscutíveis do poder feminino. Para tais ocasiões, elas personificavam os espíritos que surgiam das profundezas ou desciam do céu. Com este jogo de simulação elas subjugavam os homens. Em uma ocasião, Sol, marido de Luna, descobriu o engano quando viu duas mulheres tirando suas máscaras e zombando do medo que causavam aos seus dominados. Indignado e surpreso, ele confidenciou sua descoberta ao resto dos homens e preparou uma grande rebelião com eles. Foi assim que eles atacaram as mulheres e mataram todas aquelas que tinham idade suficiente para conhecer o segredo. Luna fugiu para o céu depois que seu marido lhe deu fortes golpes que deixaram manchas em seu rosto, que ainda são visíveis durante as noites de lua cheia. Sol a perseguiu, incapaz de alcançá-la até agora; assim nasceram o dia e a noite. Quando as meninas que foram salvas da rebelião cresceram, os homens comemoraram seu primeiro Hain.
A despedida
Em 10 de julho de 1923, os homens se agruparam e, em linha reta, deixaram a Grande Cabana, atravessando a pradaria em direção ao acampamento. As mulheres saíram para cumprimentá-los. A cerimônia tinha acabado. Nos dias anteriores, Martin Gusinde apresentava sintomas de escorbuto e anemia. Ele insistiu com Tenenesk em sua intenção de cruzar a cordilheira para chegar à fazenda Harberton – propriedade do missionário anglicano Lucas Bridges, às margens do Canal de Beagle – e depois retornar a Santiago do Chile. Segundo Tenenesk, era uma loucura impensável. Nem mesmo um selk’nam ousaria cruzar a cordilheira no inverno. Gusinde, determinado, anunciou que Ton e Hotex estavam dispostos para acompanhá-lo.
Imensamente aborrecido com a teimosia de seu hóspede, Tenenesk fez uma última ameaça: “Uma forte nevasca e um vendaval vão surpreendê-los. Se seus companheiros também perecerem, então ai de nós! Todos nós vamos responsabilizar apenas você porque você não quis ouvir meu aviso! Você não pensa em seu pai ou sua mãe que querem vê-lo novamente? Sua obstinação me machuca muito. Eu te adverti! Não vamos nos voltar a ver!”
Gusinde começou rapidamente os preparativos para a viagem. Despediu-se de cada um, grato pela amizade e confiança dos amigos a quem prometeu que voltaria. A viagem até a fazenda durou cerca de seis dias. A cada momento ele se lembrava das palavras de Tenenesk. A paisagem era desolada e gelada, e o dia os abandonava ao seu destino depois de algumas poucas horas de luz. A pouco de morrer de frio e congelamento, Gusinde e o sel’knam chegaram ao seu destino.
Martin Gusinde nunca mais encontrou Tenenesk. Durante o inverno de 1924 ele morreu com sua esposa Kauxia e Arturo, vítimas de sarampo, enquanto o sacerdote já estava em Viena iniciando seu doutorado em etnologia, antropologia física e pré-história. Akukiol e seu marido Halimink morreram cinco anos depois, afetados pela mesma doença. Martin Gusinde morreu em Viena, aos 83 anos, tendo publicado grande parte dos resultados de suas expedições ao sul da Patagônia.